Entenda os limites legais da exigência de novo procedimento de heteroidentificação racial em concursos públicos e saiba quais são seus direitos
Introdução
A exigência de novo procedimento de heteroidentificação em cada concurso público tem gerado controvérsias jurídicas, inconformismo entre candidatos e insegurança jurídica. O caso é ainda mais grave quando se trata de pessoas negras que já passaram por esse processo anteriormente — inclusive já exercendo cargo público em decorrência de aprovação anterior nas cotas raciais.
O que é o procedimento de heteroidentificação e por que ele se repete em cada concurso?
O concurso público é, essencialmente, um procedimento administrativo de seleção, cujo objetivo é escolher os candidatos mais aptos para o exercício de funções públicas em determinado momento histórico. Cada certame possui seu próprio edital, regulamento, critérios de avaliação e exigências — inclusive no que diz respeito à autodeclaração racial.
Conforme consolidado na doutrina administrativa, o concurso é um procedimento uno, com efeitos jurídicos limitados ao edital que o rege. Isso significa que todas as fases — como provas objetivas, testes físicos, exames médicos, avaliação psicológica e a heteroidentificação racial — precisam ser refeitas a cada novo edital, mesmo quando se trata do mesmo cargo e da mesma instituição.
O jurista Diogo de Figueiredo Moreira Neto define o concurso público como “procedimento administrativo declarativo de habilitação à investidura, que obedece a um edital ao qual se vinculam todos os atos posteriores.” Logo, é o edital que delimita as regras do jogo — e estas valem apenas para aquele certame específico.
Concurso público é procedimento uno e autônomo
A ideia de que cada concurso é isolado se ampara na legalidade estrita, na isonomia entre candidatos e na supremacia do interesse público. O edital é a lei do concurso, e tudo o que dele decorre está restrito àquele contexto temporal e normativo.
Por isso, não é possível “reaproveitar” resultados de provas anteriores, seja na avaliação médica, no teste físico ou na investigação social. O raciocínio é que, em se tratando de funções públicas, a Administração deve verificar a aptidão atual do candidato. Um certame realizado em 2019 não pode servir como parâmetro suficiente para atestar a condição de um candidato em 2025 — salvo uma exceção, como veremos a seguir.
A exceção: raça é condição permanente
Ao contrário da aptidão física, da idoneidade moral ou dos conhecimentos técnicos, a raça não se altera com o tempo. Se um candidato foi reconhecido como negro por uma comissão de heteroidentificação em 2019, sua condição racial permanece a mesma em 2025 — a não ser que se admita, absurdamente, que sua aparência fenotípica tenha “se transformado”.
Essa lógica revela a fragilidade do critério exclusivamente fenotípico adotado atualmente pelas bancas. O pertencimento racial é uma condição existencial e permanente, e sua reavaliação repetida pode configurar grave violação aos princípios da legalidade, da proporcionalidade e da razoabilidade.
Entendimento do CNJ e limites objetivos para a exigência de novo procedimento
A Resolução nº 614, de 2025, do Conselho Nacional de Justiça, trouxe um importante precedente normativo ao permitir o aproveitamento recíproco do resultado do procedimento de heteroidentificação realizado no Exame Nacional da Magistratura (ENAM) e no Exame Nacional dos Cartórios (ENAC).
Segundo a norma, é possível utilizar o resultado anterior desde que:
I – o candidato tenha mantido o mesmo domicílio de submissão à comissão de heteroidentificação do respectivo Tribunal de Justiça;
II – o procedimento anterior tenha sido realizado há, no máximo, quatro anos, contados da expedição do certificado de habilitação.
Ainda que restrita a concursos vinculados ao Poder Judiciário, essa inovação sinaliza uma tendência positiva de valorização da identidade racial declarada e reconhecida anteriormente, evitando constrangimentos repetidos e análises subjetivas abusivas.
Conclusão: é possível aproveitar resultado anterior?
A resposta técnica, sob o ponto de vista legal atual, ainda é não. Salvo previsão expressa em edital ou regulamentação específica como a do CNJ, os concursos exigem novo procedimento de heteroidentificação.
Contudo, essa exigência precisa ser questionada, sobretudo diante de situações em que o candidato:
já teve sua autodeclaração racial reconhecida por comissão anterior;
já ocupa cargo público pelas cotas raciais;
possui documentação comprobatória de sua identidade racial;
mantém aparência fenotípica inalterada.
Nesse contexto, é perfeitamente legítimo — e necessário — judicializar a questão, com base nos princípios do Direito Administrativo e na jurisprudência constitucional consolidada.
Perguntas Frequentes (FAQ)
1. Já fui aprovado em outro concurso como cotista racial. Preciso passar novamente pela comissão de heteroidentificação?
Sim, via de regra. Cada concurso público é regido por seu próprio edital e constitui procedimento autônomo. Portanto, ainda que o candidato já tenha passado por comissão anterior, o novo certame pode exigir nova heteroidentificação. No entanto, tal exigência é questionável do ponto de vista jurídico, especialmente em razão da imutabilidade do pertencimento racial.
2. A Administração Pública pode desconsiderar uma autodeclaração racial previamente homologada?
Não deveria. Uma autodeclaração racial homologada por comissão oficial em concurso anterior é prova robusta da identidade racial do candidato. Desconsiderá-la pode violar os princípios da segurança jurídica, da boa-fé administrativa e da proteção à dignidade da pessoa humana.
3. A jurisprudência já reconhece o aproveitamento de heteroidentificação anterior?
Sim, parcialmente. A Resolução nº 614/2025 do CNJ permite o aproveitamento recíproco do procedimento de heteroidentificação no âmbito do ENAM e do ENAC, desde que observados critérios objetivos. Esse precedente pode ser utilizado como argumento para pleitear o reconhecimento judicial da validade de laudos anteriores em outros certames.
4. É possível recorrer judicialmente contra a exigência de novo procedimento de heteroidentificação?
Sim. Quando comprovado que o candidato já passou por comissão anterior e que sua identidade racial permanece inalterada, é possível propor ação judicial com pedido de tutela de urgência para garantir sua permanência no certame. O Judiciário tem reconhecido, em casos pontuais, a validade da autodeclaração homologada anteriormente.
5. A banca examinadora pode desclassificar candidatos pardos com base apenas em critérios fenotípicos?
Essa prática é contestável. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, notadamente no julgamento da ADC 41, reconhece a legitimidade das cotas raciais, mas condiciona sua aplicação ao respeito ao Estatuto da Igualdade Racial — o qual expressamente define que negros são os pretos e os pardos. A desclassificação de candidatos pardos com base apenas em aparência pode configurar discriminação indevida.
6. Qual o prazo para impugnar uma decisão da comissão de heteroidentificação?
Depende do edital. Em geral, os concursos estabelecem prazo de dois a cinco dias úteis para interposição de recurso administrativo. Caso indeferido o recurso, é possível ajuizar ação judicial com pedido de liminar. A celeridade é fundamental nesses casos.